Talvez o tipo de conteúdo que mais curto acompanhar em redes sociais e newsletters seja aquele que costumava chamar de "pessoas contando aleatoriedades sobre a própria vida", mas que descobri pelo Tales tem o belo nome de "Slice of Life", ou "Fatia de vida".
E eis que pelo sorteio do amigo secreto do grupo de pessoas escrevedoras de newsletters, acabo conhecendo a Luísa, que, com uma habilidade narrativa ímpar, conta fragmentos de uma vida em construção.
A proposta do amigo secreto era escrever uma newsletter em resposta ou diálogo com a sorteada, mas, na incapacidade de escolher um único texto, resolvi responder a três. No primeiro, Divisa entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul, Luísa conta:
Cismei com o que li sobre aquele ser o último trecho livre de represamento no Rio Paraná. O que tinha para ser preservado na região está submerso. Abaixo de águas represadas. Salto de Sete Quedas, no município de Guaíra/PR, foram as maiores cachoeiras do mundo em volume de água até a sua submersão completa com a abertura das comportas e a formação do reservatório de Itaipu em 1982. Entrei em luto por um conjunto de cachoeiras de que nunca tinha ouvido falar até a semana passada.
Últimos anos da ditadura militar brasileira. Sim, é claro, havia outras opções de hidrelétricas que não acabariam com as cachoeiras na fronteira com o Paraguai. Duas turbinas a menos em Itaipu, quem sabe. Mas aí não seria a maior do mundo naquele momento, numa época de maiores, melhores e superlativos. Ponte Rio-Niterói. Usina de Angra dos Reis. A audácia do slogan “Visite antes que a acabe”. A horda de visitantes que queriam conhecer as quedas antes de seu desaparecimento. Eu também teria dado meu jeito de ir.
O encerramento de um parque nacional que não deu conta de proteger sua principal atração. Milhares de hectares alagados em doze dias. Terra vermelha, terra roxa, roja. Indígenas expulsos de suas terras. Animais que não foram resgatados. Colonos sem indenização. Sítios arqueológicos não explorados. Efeitos apenas secundários. O acidente numa ponte de travessia sobre as cachoeiras. 32 pessoas mortas. O circuito do finado parque era feito em pontes pinguelas sobre as cachoeiras. Pinguela, um nome bem melhor para ponte pênsil. Ah, o turismo nos anos 80. Um poema-adeus de Drummond. Dez anos de planejamento. Sem tempo para programar sequer o resgate dos animais. Os morcegos, pequeninos, que habitavam cavernas na área dos saltos invadiram casas de Guaíra nos três dias seguintes ao alagamento. Não viram a tempo o aviso nos jornais? Saiam daqui antes que acabe.
Confesso que ao ler esse trecho me bateu aqui uma ansiedade ecológica tremenda, que, no meu caso, acaba sempre virando uma melancolia, um sentimento de não ter mais o que fazer. Ao mesmo tempo, é incrível perceber que outras pessoas se importam, e ao descobrir que você se importa, é como um abraço quentinho, que talvez ainda dê tempo, se não de salvar toda uma região alagada ou famílias de morcego, construir outra coisa. Acho que existe um valor em não se sentir mais sozinho. É por isso que a gente escreve, não?
Curiosamente, é isso também que aparece em outro texto, O fim de uma amizade virtual.
Eu era um pouco mais velha. Estava nos meus últimos anos de São Luís, no final da adolescência. A gente só se conhecia pela internet. Depois de seu aniversário, depois de ver as fotos da comemoração numa rede social já descontinuada, perdemos o contato. Ela sumiu. Não entrou mais no messenger. Pelo menos não com o e-mail que eu conhecia. bruc, apelido para Bruna. Nunca soube seu sobrenome. Não me lembro de qualquer informação que poderia usar hoje para encontrá-la.
O que terá sido de bruc? Demoro a entender esse vazio de ter perdido totalmente o contato com alguém que chegou a ser tão próxima, com quem troquei confidências. O que representou para ela o marco dos quinze anos a ponto de ter excluído toda uma presença online e talvez ter começado tudo outra vez? Será que depois passou a usar as redes sociais utilizando o nome, não o apelido? Não consegui ir longe imaginando um futuro para ela. Do que adiantaria saber que curso fez na faculdade (se é que fez), com quem estaria se relacionando hoje? Seria suficiente saber com o que ela trabalha? Ou saber se ainda teríamos algo em comum? Ver uma selfie publicada de vez em nunca seria o mesmo que manter contato?
Ainda me debato com a divisão entre o mundo real e o mundo online, uma separação que hoje existe praticamente só na minha cabeça. Falar que alguém é sua amiga de internet já não causa o mesmo estranhamento de antes. O que eu sinto é uma aflição de misturar os dois mundos. E me deixar conhecer mais de alguns jeitos que eu só me sentia confortável com amizades que não estavam me vendo.
Tive um punhado de amizades virtuais, perdi o contato com quase todo mundo. Alguns cheguei a reencontrar depois em suas versões adultas, trabalhando no mercado editorial, em eventos de literatura, quando depois de meia dúzia de conversa por acaso percebemos ter se cruzado lá atrás no mesmo fórum. A vida tem dessas coisas.
Acho muito curioso isso que estamos fazendo na Internet. Tenho amigos que frequentam minha casa que outro dia me olharam espantados, "como assim você escreve ficção científica?" E meus amigos virtuais acham curioso quando resolvo postar uma foto em cima do trator roçando um matagal aqui no sítio.
Também acabo pensando muito nessa coisa de viver online, mas acho que todo mundo tem várias vidas, algumas delas ao mesmo tempo, algumas separadas por geografias, outras por URLs. Até hoje não sei se deveríamos incorporar todas as nossas identidades, ou se é mais saudável sermos essas pessoas múltiplas, dependendo de com quem estamos. Ou onde estamos.
E isso tudo tem muito a ver com pertencimento e desarraigo, assunto da sua terceira carta que escolhi para trazer aqui:
Levo seis anos completos vivendo em Curitiba. Nem eu acredito que já passou tanto tempo. Antes disso, São Paulo, São Luís, Florianópolis e São Luís. Com um pulo em Santiago nesse meio tempo. Como bell hooks em cidades estadunidenses, tentei que cada uma dessas cidades fosse o meu lugar no mundo. Pra ser sincera, eu ainda não sei se Curitiba é esse lugar. Tenho uma tendência pessimista de acreditar que esse lugar nem existe mais. Melhor me aquietar do que passar a vida toda procurando. Nem sei se acredito no que acabei de escrever.
Não fui expulsa, nem obrigada a sair. Foi uma escolha. Aprendi um termo melhor: desarraigo. Esbarrei nessa palavra enquanto escutava o livro Ceniza en la boca da escritora mexicana Brenda Navarro. (...) Desarraigo é uma dessas palavras que conheci em castellano para depois saber que também constam no dicionário de português. Desarraigar é arrancar pela raiz. EXTIRPAR. Ainda é um conceito sobre tirar alguém de determinado lugar, com uso de força.
Ultimamente venho acreditando que esse senso de pertencimento, de lugar, tem que ser construído, dentro e fora da gente. Talvez quando crianças isso venha de forma automática, mas sempre vem a adolescência pra gente ver que aquele lugar que a gente cresceu não cabe muito bem.
Saí de casa com quinze anos, quando decidi fazer colégio técnico em outra cidade. Saí "para nunca mais voltar", vindo de uma cidade pequena com maioria conservadora. Depois do ensino médio foi faculdade ainda mais longe, de lá para um emprego em São Paulo até uma mudança para Campinas em busca de um pouco mais de qualidade de vida.
Eu nunca me sentia exatamente pertencente àquele lugar onde estava, uma vida sem construir raízes, como quem está só de passagem. Até chegarmos a Campinas, onde decidimos que ficaríamos... Mas não deu certo. Depois de dez anos tentando, tínhamos a impressão de que nunca teríamos aquele sentimento de pertencimento. Talvez porque as pessoas dali tivessem seus grupos de amigos desde sempre, talvez porque os problemas de uma cidade grande junto à cabeça de interior acabasse por dificultar que encontrássemos nossa turma.
Acabei de volta à cidade de onde saí. E o motivo foi o mais importante e mais besta: dinheiro. Percebemos que nunca teríamos dinheiro para construir a vida que queríamos ali, e como meu pai tinha um sítio, pelo menos teríamos onde construir, e fincar raízes. O tipo de coisa que se pensa demais quando se tem crianças. E voltei.
E agora estamos aqui, tentando construir esse lugar, esse senso de pertencimento, conhecendo gente nova. Porque é curioso, por mais que a cidade não tenha mudado tanto assim, eu mudei muito. Então a sensação de ter vindo para cá é de ter chegado a um lugar novo, onde as lojas são as mesmas, mas as pessoas são outras.
Enfim, termino essa carta dizendo que foi um prazer descobrir sua newsletter por meio desse amigo secreto. E espero ter conseguido convencer mais gente a acompanhar o Doses de Tiquira.
A outra recomendação de hoje é o texto que ganhei de amigo secreto: Presente de Grego, ano II, escrito pela Paula Maria, em resposta ao meu texto “Tudo custa cinco vezes”.
Uma breve resposta ao texto da Paula:
Amei a carta, principalmente quando diz que objetos conversam, contam histórias! Concordo plenamente, e adoro uma peça de mobiliário cheia de personalidade! Acho que isso só se torna um “problema” quando tudo quer falar ao mesmo tempo, e as coisas demais se sobrepoem. No fundo, também acho que minimalismo não é pra mim. Mas, sabe, aquela vontade de deixar a vida mais fácil? Muito obrigado pela carta!
Um abraço,
Rodrigovk
Rodrigo, adorei essa carta <3
Vendo esses três textos relacionados e os teus comentários sobre os assuntos, fiquei pensando que é tão bom conseguir se identificar com algo que outra pessoa escreveu. A internet ainda é capaz de proporcionar esse senso de proximidade/comunidade (nem que seja uma comunidade pequenina em comparação com a imensidão da coisa).
Sobre pertencimento, às vezes fico me perguntando se as pessoas que ficam também não precisam ficar constantemente construindo o lugar e forjando novas relações com o espaço e com as pessoas. Porque, se isso de fato acontece, nós que saímos e voltamos não estávamos lá pra ver o processo acontecendo. E parece tudo tão pronto, definitivo. Estou torcendo para você encontrar o seu lugar de volta na sua cidade. Eu ainda não faço ideia se estou no caminho/lugar certo, mas vale sempre tentar.
Obrigada pela leitura atenta e por esse texto 💜
a gente roda, roda, roda e descobre que o nosso lugar no mundo, se existe mesmo, é do corpo para dentro.